AMERICAN FICTION: Pedro Guimarães Dá Sua Visão Sobre um dos Sucessos de 2023

O CONVIDADO DE HOJE DO CINEMARCO É PEDRO GUIMARÃES.

O melhor de 2023? Uma sátira hilária do contraditório cenário editorial nos EUA 

American Fiction, obra de estreia do diretor e roteirista Cord Jefferson, baseada no livro de Percival Everett, Erasure (sem tradução para o português), propõe uma grande sátira do cenário da representação afro-americana na literatura, e uma crítica à influência mercadológica que a necessidade branca de mitigar a sua culpa tem sobre a literatura e o cinema afro americanos. A sátira é construída de maneira satisfatória com momentos excepcionalmente hilários, que fizeram a mim e a todos na minha sessão gargalharem alto. 

Monk, interpretado brilhantemente por Jeffrey Wright, é um professor e escritor americano que não tem sucesso em nenhuma de suas profissões. Críticos literários demandam que, por ser um escritor negro, deve ater-se a pautas raciais e narrativas politizadas. Revoltado com o sucesso de livros, em sua opinião, simplistas e que abordam uma visão planificada e “para brancos” da experiência afro americana, o escritor, em uma grande piada, decide escrever sob um pseudônimo um livro do estereotípico “negro” – pais ausentes, rappers, crack e sexo (tradução livre) – em suas próprias palavras. Ao perceber que o livro seria um grande sucesso e as propostas começando a pipocar, um grande dilema se instaura na cabeça de Monk. Dilema que conduz a narrativa entre duas linhas completamente distintas. De um lado acompanhamos todos os trâmites da negociação entre seu pseudônimo e grandes editoras, e todas as implicações dessas interações. Já do outro, acompanhamos um drama familiar que se estabelece quando de repente, Monk precisa arcar com toda a responsabilidade de cuidar de sua mãe. Muito graças às grandes atuações caricaturalmente realistas do elenco, que conta com nomes como Sterling K. Brown (This is Us), que interpreta o irmão mais novo do personagem principal, e Erika Alexander, que interpreta o interesse amoroso de Monk, esse lado da narrativa acaba por se tornar tão interessante quanto o principal, mantendo o engajamento do público.

Percebe-se que o grande foco é o personagem de Wright. Todos os arcos dramáticos dos personagens secundários, mesmo que entre eles próprios, baseiam-se de alguma maneira na influência de Monk em suas vidas. Isso cria uma grande responsabilidade para Jeffrey, com a qual ele lida com facilidade e naturalidade. Seu timing cômico impressiona. As cenas nas quais ele transita entre uma “interpretação ” de Stagg R. Leigh, seu pseudônimo, e seu eu “de verdade” são extraordinariamente bem feitas, porém trágicas. Essa necessidade de transição demonstra uma contradição do mercado branco hegemônico, seja editorial ou até cinematográfico. Ao falar sobre identidade, o mercado exige uma mudança na mesma. Monk não resiste sendo ele mesmo, lidando com pautas com as quais ele quer e com a linguagem que lhe convém. Existe uma exigência de uma linguagem e abordagem ideal para suprir e mitigar a culpa branca.

Em oposição ao alvo da crítica do filme, a obra constrói um retrato muito mais complexo e abrangente da experiência afro americana. Até mesmo pela narrativa que migra de uma linha mais politizada para uma linha mais intimista e familiar, podemos perceber o respeito que o roteiro tem pelas individualidades. Ele não aborda uma síntese da experiência de um povo inteiro, mas sim, aborda a experiência de um indivíduo único, com suas próprias inclinações, vontades e visões de mundo. 

Formalmente, o filme mantém uma estrutura tradicional ao longo de grande parte de sua extensão . Algo que poderia se tornar desinteressante é completamente quebrado. As subversões formais que o diretor aplica no filme agregam e refrescam a experiência, como um respiro em meio a certo comodismo formal que por pouco não permeou a completude da obra. 

Não é à toa que o filme recebeu 5 indicações ao Oscar 2024. Primeiramente, a trilha sonora composta por Laura Karpman destaca-se com um piano delicado que permeia toda a obra, ditando o tom das cenas com maestria. Em seguida, nas categorias de atuação, Jeffrey Wright e Sterling K. Brown foram indicados merecidamente por seus respectivos papéis. O roteiro se destaca pelos diálogos cômicos e profundos que compõe o longa. Já a categoria de melhor filme é um pouco mais complicada. Apesar de ser o meu filme favorito da temporada, American Fiction está competindo com filmes como Oppenheimer e Poor Things, os quais vem tomando conta das premiações. Será que American Fiction tem alguma chance? Meu voto já estaria garantido para o filme de Cord Jefferson. 

Em síntese, American Fiction é excelente desde aspectos formais e técnicos até temáticos. Na minha opinião, levaria o prêmio da academia para casa em todas as categorias! Um grande filme para assistir e refletir.

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