Hoje o convidado do CINEMARCO é meu amigo Eron Duarte Fagundes. Uma lista maravilhosa e comentada.
Convidado por meu amigo Marco Antonio Bezerra Campos a apresentar-lhe meus melhores filmes do ano de 2025, vai nestes filmes escolhidos (o clássico número dez: dez filmes) algo do resumo de um ano de cinema. Como acontece hoje em dia, alguns filmes foram vistos nas salas, outros tantos em plataformas variadas da internet. A ordem que está abaixo é a da minha preferência.
- Fechar os olhos, de Victor Erice. Víctor Erice é uma peça rara do cinema. O diretor espanhol tem 84 anos e fez somente quatro filmes: O espírito da colmeia (1973), El sur (1983), O sol do marmeleiro (1992) e agora, passados tantos anos, quando se imaginava que pela idade não se abalançaria ao complicado processo de uma filmagem, nos surge com uma obra à altura de seu fervor estético, Fechar os olhos (Cerrar los ojos; 2023). Posto por alguns analistas ao lado de realizadores espanhóis deslumbrantes, como o delirante Luis Buñuel e o mais cerebral Carlos Saura, Erice percorre um caminho ainda mais secreto do universo cinematográfico: ainda que ele use da simplicidade de filmar, aparecem camadas escondidas das relações de personagens que não se entregam tão facilmente ao observador. Fechar os olhos tem suas chaves fílmicas sinuosas.
- A besta, de Bertrand Bonello. O filme começa com a atriz francesa Léa Seydoux, meio perdida e estranha num cenário abstrato e vazio, ouvindo ordem de um diretor que a instrui em detalhes, como mover-se na cena, como pegar duma faca sobre um móvel até o grito inusitado diante da visão da besta (assim como a voz do diretor, a besta está fora do quadro). A sequência deste encontro com a besta, extradiegética e até metalinguística na abertura, volta a ser encenada, agora diegeticamente, lá pelo fim do filme a faca, e encontro com a besta e o grito. O grito de Léa é tão estrangulador quanto o da atriz brasileira Maria Fernanda Cândido em A paixão segundo G.H. (2023), de Luiz Fernando Carvalho, em que a personagem, vindo do universo literário de Clarice Lispector, grita quando depara com uma barata, a besta da literatura de Clarice.
- Uma noite sem saber nada, de Payal Kapadia. As imagens que abrem o filme trazem um quadro de estrutura visual nebulosa em que as pessoas dançam: um contraste; há alegria no interior das cenas mas a estética adota um sombrio fugitivo. No fim do filme novamente as imagens das pessoas que dançam retornam. É como um ciclo: a narrativa reproduz este ciclo. Uma noite sem saber nada (título internacional, A night of knowingg nothing; 2021) é um mergulho na construção dum ritmo cinematográfico original, de genética tão indiana que exige do espectador uma compreensão diversa, uma reeducação de seu olhar viciado no ordinário do cinema. Proposto como um documentário de ficção, o filme se vale da narrativa indireta dumas cartas que se teriam encontrado num estúdio, deixadas por uma estudante de cinema e endereçadas a seu namorado; as paixões entre estes dois jovens aparecem nas missivas misturadas lá pelas tantas com registros de protestos políticos das convulsões sociais indianas, a experimentação visual e o compromisso político se casam na estrutura formal, obsessiva e lenta, que a realizadora Payal Kapadia vai edificando.
- Sol de inverno, de Hiroshi Okuyama. Hiroshi Okuyama é um jovem realizador japonês (tem somente 28 anos). Seu segundo filme, Sol de inverno (Boku No Ohisama; 2024), chega aos cinemas brasileiros. E provoca no espectador a paixão de ver, o delírio visual feito com tato e contenção desde a primeira imagem, profundamente plástica como todas as desta narrativa de sensibilidade volta para uma sutil ligação afetiva entre um menino e uma menina na fase inicial da adolescência, ainda na escola. Um professor de patinação artística faz uma ponte entre estes dois jovens ao convocá-los para exercitarem o talento com os patins, no ginásio fechado ou no gelo das ruas de inverno; lá pelas tantas, mexendo com a ambiguidade que transparece no comportamento do professor, a garota pergunta, intrigada, saindo de sua timidez: “Por que o senhor trouxe um menino para um esporte de meninas?” O professor, perplexo, emudece. Sol de inverno, à sua maneira, traz ecos do japonês Yasujiro Ozu, os trens, a utilização de cenários. A via pode ser Hirokazu Kore-eda, de quem Okuyama foi assistente de direção. As cenas de danças sobre patins têm uma coreografia cinematográfica extasiante. O inverno e a neve dominam muitas vezes as questões dentro do quadro. Um dos filmes mais belos e sensoriais da atualidade.
- Correspondências, de Victor Erice e Abbas Kiarostami. Inicialmente foi uma exposição em Paris, no Centro George Pompidou. Tratava-se de cartas em imagens e sons trocados entre dois cineastas de grande prestígio crítico, o espanhol Victor Erice e o iraniano Abbas Kiarostami. Uma aproximação exterior dada como publicidade do evento: ambos nasceram em 1940, separados por um intervalo de uma semana. Eram dois grandes do cinema que não se conheciam. O ensaísta francês Alain Bergala e o diretor espanhol de exposição no CCCB de Barcelona Jordi Balló tiveram a intuição de que havia algo mais profundo que aproximavam dois homens de duas civilizações tão diversas: uma visão estética e uma visão de mundo, apesar de toda a agudeza das diferenças culturais. Materialmente, as cartas trocadas entre Erice e Kiarostami geraram dez filmes curtos, cuja duração variou entre três ou quatro minutos e doze minutos. O que se viu inicialmente era uma exposição dedicada aos dois artistas, o cinema como exposição, o cinema também como peça de um museu, assim como a pintura, a escultura, a gravura, a fotografia, as instalações. O título da obra: Correspondências, Victor Erice/Abbas Kiarostami(2005/2006), as cartas estão datadas, cobriram estes dois anos.
- As cores e os amores de Lore, de Jorge Bodanzky. Jorge Bodanzky é um dos nomes do cinema brasileiro. Iracema, uma transa amazônica (1975), codirigido por Orlando Senna, O terceiro milênio (1981), A igreja dos oprimidos (1986) são obras básicas para se reflexionar sobre os rumos de nosso cinema a partir duma perspectiva social e política. Embora Iracema seja uma ficção e conte com uma estrela como Paulo César Pereio, em todos os filmes, inclusive neste, os aspectos documentais do cinema de Bodanzky assomam: a ausência da dramaturgia glamurizada, este balanço entre um rigor geral e a espontaneidade (meio improvisada) da encenação. Em seu novo trabalho, As cores e amores de Lore (2024) estas características de filmar do cineasta tornam a ser encontradas em seu mais alto grau.
- O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho. O agente secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho, está ambientado em Recife no fim dos anos 70: a atmosfera dos tempos de perseguição e perigo daquela década em que a sociedade brasileira era determinada pela ditadura militar está em cena, mas nunca é citada diretamente, quer nos diálogos, que nas imagens. A tentação comparativa com Ainda estou aqui (2024), de Walter Salles, outro filme brasileiro cujo barulho midiático começou nos festivais, chegou às plateias majoritárias dos cinemas e circula o famigerado Oscar americano, vem; Ainda estou aqui conta uma história carioca do começo desta mesma década de 70, é direto em suas referências ao regime político autoritário da época; o método de Kleber, como se sabe de seus filmes anteriores, vai por outro caminho, é enviesado ou transversal, transformando seu O agente secreto numa metáfora de situação, cujos signos exigem a elaboração perceptiva do espectador para descobrir mesmo o que se passa diante da câmara.
- Uma batalha após a outra, de Paul Thomas Anderson. Estamos, enfim, diante do filme da Era Trump. Uma era que não se resume aos Estados Unidos e à personalidade do atual presidente americano, Donald Trump. É uma era que engloba vários tipos e dirigentes brucutus pelo mundo e não começou agora: desenvolveu-se ao longo das décadas, entre o fim do século passado e estes anos do começo do século XXI. Em Uma batalha após a outra (One battle after another; 2025) o realizador Paul Thomas Anderson capta com fúria a explosividade de imagens contemporâneas de nossas sociedades planetárias. Desde os primeiros quadros as personagens incomodam, agridem, perturbam, a violência de filmar (com planos rápidos e tensos e uma montagem frenética) acompanha o íntimo turbulento destas criaturas. É no militar racista e fascista Steven J. Lockjaw, interpretado com significativo desassombro por Sean Penn, que o filme de Anderson topa a face mais descabelada de sua audácia: ainda que incrustado num modelo industrial de filmar, o cinema de Anderson ousa interferir nas marcações conformistas das relações de um filme com o espectador, este convidado quase a desinstalar-se de sua poltrona.
- Emilia Pérez, de Jacques Audiard. Durante anos o realizador francês Jacques Audiard foi um daqueles nomes do limbo, conhecido apenas por cinéfilos mais atentos, que se encantaram já com seu primeiro filme, O declínio dos homens (1994), cuja precisão de estilo subvertia uma narrativa policial. Até que, abrindo certas concessões formais, ele chegou a um público maior com O profeta (2009). Agora, por malversados e inesperados caminhos, seu trabalho está na boca de todos, com Emilia Pérez (2024), uma história mexicana filmada em estúdios franceses; quem viu seu filme e quem não viu entra nas rodas de discussão, o que, desde já, caracteriza uma das facetas do declínio do pensamento cinematográfico no século XXI; a cegueira, não se precisa ver, basta atacar; e ataca-se inclusive quem defenda o filme. Sim: o filme, como, em maior ou menor grau, toda obra de arte, tem seus artifícios, o México de Audiard é fruto de sua ficção, desde o roteiro, não é o México de quem vive lá, é o México da cabeça de Audiard, com a narcotráfico, a violência, suas esquisitices. Sim: como todo europeu ou americano que desembarca com sua equipe de filmagem nos países considerados periféricos (John Huston em Uma aventura na África, 1951, Werner Herzog em Aguirre, a cólera dos deuses, 1972, para ficar em duas obras-primas do cinema), Audiard é inevitavelmente colonialista em sua visão de nossos continentes americanos, latino-americanos. Mas Audiard, um homem que filma como se os planos estivessem dirigidos pelos ponteiros de um relógio, faz uma narrativa explosiva, cheia de seiva e vigor, como se requer de um grande filme, que Emilia Pérez de fato é.
- Inverno em Sokcho, de Koya Kamura. Inverno em Sokcho (Hiver à Sokcho; 2024) é uma das surpresas do ano, talvez a grande surpresa de 2025. Filme de estreia do japonês Koya Kamura, feito para produtores franceses e sul-coreanos, ambientado na Coreia do Sul, no inverno da pequena cidade de Sokcho mesmo (filmando com melancolia sua neve que cai, seus interiores gelados), Inverno em Sokcho apresenta para os olhos do espectador uma profunda sensibilidade que nasce do rigor clássico cujos tons de sentimental-existencial são altamente elaborados por um realizador que foge inteiramente ao habitual do cinema.